Por Ângela Guimarães*
O ano de 2018 é repleto de efemérides. 220 anos da Revolta dos Búzios, 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988 mesma ocasião em que a Unegro completou 30 anos de luta contra o racismo, sexismo, lgbtfobia, intolerância e racismo religioso, e todas as suas formas correlatas de manifestação.
Somos um país de 518 anos, sendo que destes, 388 vividos sob a égide da escravidão – desumanização, super-exploração do trabalho cativo num regime de intensa violência física e simbólica – que moldou toda a nossa estrutura econômica, social, cultural e de poder. Nesta trajetória convivemos mais tempos sob regimes autoritários do que sob regimes democráticos o que também marca indelevelmente não apenas a nossa estrutura social mas sobretudo a subjetividade do povo brasileiro.
Assim, podemos afirmar que as lutas coletivas e sociais desde o período escravocrata foram o espaço de resistência das populações africanas, indígenas e seus descendentes. Revoltas, rebeliões, fugas, suicídios, envenenamentos de senhores, quilombos, muitas foram as estratégias de resistência que contribuíram para a permanência da população negra em solo brasileiro até os dias de hoje.
Em síntese, somos uma nação forjada sob os signos da desumanização dos povos africanos e indígenas que sobrevivem a um genocídio cotidiano, inferiorização das mulheres, subalternização dos moradores do norte e do nordeste e esta herança do escravismo e do colonialismo não vai desaparecer naturalmente, ela precisa ser exposta e enfrentada.
Durante muito tempo quiseram nos fazer acreditar na fábula do Brasil como um país pacífico, com povo ordeiro vivendo sob uma democracia racial, tudo isso para esconder o país cruelmente racista, que inferioriza e mata negros, mulheres e pessoas LGBTs, nação de brutal concentração de renda, profundas desigualdades sociais, extremo controle social baseado na violência das chacinas, grupos de extermínio e milícias que atuam de forma cotidiana.
Sendo assim, sem superar a herança escravista, sem dividir riquezas, sem fazer reforma agrária, urbana, tributária e política, sem democratizar os meios de comunicação, amplificar e radicalizar nos espaços de participação social, sem promover uma cultura e valores baseados no trabalho cooperativo e solidário, no respeito e convivência com a diversidade, sem a disseminação do respeito às individualidades, à liberdade de pensamento e expressão e aos direitos humanos de todas as pessoas, não será possível construir uma sociedade de paz e igualdade.
Data do período da redemocratização e do estabelecimento da Constituição Federal em 1988 importantes conquistas como a criminalização do racismo, o reconhecimento das comunidades quilombolas, a criação da Fundação Cultural Palmares. Mais recentes ainda (Era Lula e Dilma) são as conquistas de um Ministério próprio para implementar e transversalizar a política de promoção da igualdade racial, as Ações Afirmativas nas Universidades Públicas (e sua expansão e interiorização) e concursos públicos, a criação de centenas de organismos de gestão das políticas de promoção da igualdade racial nos estados e municípios, a Política Nacional de Saúde da População Negra, o Plano Juventude Viva de prevenção à violência contra a juventude negra, a política de habitação com o Programa Minha Casa Minha Vida que assegurou mais de 4,6 milhões de moradias, sobretudo às pessoas de baixa renda, o Programa Brasil Quilombola, a Política Nacional de Economia Solidária, a retirada de 40 milhões de pessoas da extrema pobreza (negros e negras são 78% deste contingente), a criação de 20 milhões de empregos formais e a política de valorização do salário mínimo que atingiu trabalhadores/as negros, a regulamentação dos direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas com a Lei Complementar 150/2015, a criação do Prouni (bolsas parciais ou integrais em faculdades privadas) que beneficiou 62% de negros e negras do total de atendidos, dentre outras políticas públicas.
Vale ressaltar que estas políticas públicas só são possíveis num ambiente de abertura e expansão da democracia. Após o golpe travestido de impeachment, patrocinado pelo consórcio que reuniu um congresso putrefato, um Judiciário partidarizado (“com STF com tudo…”) e a mídia monopolizada, todas essas conquistas foram pelo ralo. As medidas de Temer e que devem ser aprofundadas pelo fascista recém-eleito representam um verdadeiro retrocesso civilizatório. A CLT e a Constituição estão sendo desfiguradas em prejuízo do povo, os programas sociais desmontados, investimentos sociais congelados por 20 anos, a miséria e o caos social e econômico amplamente disseminados. Dias terríveis nos aguardam.
A Unegro enquanto entidade política do movimento social, avalia como catastrófico o resultado eleitoral de 2018 quando um projeto conservador, ultraliberal, xenofóbico, declaradamente racista, misógino e anti povo saiu vitorioso das urnas. Sob o nazifascista eleito, o nível de ataques contra a população negra e todo povo brasileiro será intensificado. O desmonte do país idem. A democracia será ainda mais aviltada. O Projeto ultradireitista já iniciou sua caçada às professoras/es que exercitam o livre pensar e o debate crítico nas escolas e universidades, não existirá imprensa livre pois quem falar mal do governo será censurado e calado, já declarou opositores e ativistas dos movimentos sociais “os vermelhos” como inimigos a serem presos ou expulsos do país, já se comprometeu a privatizar as empresas públicas (Correios, Bancos Públicos, Petrobrás, Eletrobras, dentre outras), a sepultar em definitivo a CLT, a promover uma guerra contra servidores/as públicos retirando nossos direitos e a estabilidade….
Neste contexto a resistência popular pelos movimentos sociais ganha outros contornos. A luta de resistência será ainda mais intensificada. Passeatas, ações judiciais, incidência parlamentar, denúncias em tribunais internacionais, mobilização da imprensa local e internacional, o apoio de ativistas internacionais, todos os recursos serão utilizados para desnudar diante do povo as reais intenções e compromissos deste governo com os poderosos daqui e do exterior, seus intentos fascistas, sua violência elevada a grau máximo de política de Estado, seu descompromisso em resolver os reais problemas do povo. Será uma luta de longa duração!.
Desde o golpe de 2016 já estamos ocupando diuturnamente as ruas, ampliando a organização de base nos bairros e cidades do interior, organizando materiais de comunicação físicos e nas redes, ampliando o diálogo com setores do movimento social e com parcelas do povo justamente para furar o bloqueio midiático que blindou o Governo Temer e facilitou seu caminho de desmonte do país. Além deste bloqueio midiático, outro fator limitador tem sido a ampla maioria deste Governo no Congresso nacional o que tem facilitado e até acelerado o desmonte dos nossos direitos e a venda do nosso patrimônio nacional.
A Unegro seguirá lutando pelo objetivo estratégico de forjar o Brasil como uma nação socialista multirracial! Acreditamos e lutaremos pelo raiar de um novo tempo para o nosso povo onde as pessoas se amem e se respeitem independente da cor das nossas peles, do nosso gênero, da forma como exercitamos a nossa religiosidade e a nossa sexualidade, da região do país em que moramos. Seguimos os ensinamentos de Nelson Mandela que acreditava na educação como a arma mais poderosa de transformação do mundo!
Acreditamos num Estado que promova o desenvolvimento e toda a potencialidade dos seres humanos e que assegure o nosso direito às liberdades civis, políticas, individuais e coletivas. Acreditamos num tempo em que não haverá famílias famintas e pessoas em situação de rua, mas que também a riqueza não estará concentrada nas mãos de 6 famílias como ocorre atualmente, em que não precisará existir a miséria de milhões para sustentar a ganância, o luxo e o fausto de alguns.
Um tempo em que não exista uma classe que não dorme com medo da revolução social dos que não comem, conforme nos ensinou o grande mestre Milton Santos. Acreditamos e seguiremos em luta por uma ordem social onde existirá solidariedade em lugar da competição, compaixão no lugar do descaso, respeito no lugar da intolerância, compreensão e diálogo no lugar do ódio e da violência. Acreditamos, sem inocência, que é necessário e urgente este tempo, o tempo da felicidade para toda a humanidade.
*Ângela Guimarães é presidenta nacional da Unegro