Por Luciano Alvarenga Montalvão
No Brasil e no mundo, o processo de reestruturação produtiva do capital tem imposto às classes que vivem do trabalho condições cada vez mais degradantes de labor e de vida. Não obstante os movimentos de automação e robotização, o capital passa por um processo de “imaterialização”, isto é, parte significativa do seu processo de produção de valor não passa mais pela transformação direta da natureza, embora em essência continue subsumido à extração de mais-valor dos homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho.
Para além das transformações estruturais na base técnica do processo de produção capitalista, temos presenciado nas últimas décadas outro movimento o qual temos denominado de “virada gerencialista”[1]. Esse processo tem como fundamento a implementação de novos dispositivos de gestão da força de trabalho com o objetivo de manter as taxas de lucro do capital, mesmo em período crise. Entre os “novos” mecanismos de gestão, podemos citar: a gestão pela qualidade total, a avaliação de desempenho, a gestão por metas e competências, a flexibilização do trabalho, a imposição da polivalência e da profissionalização, dentre outros. O sociólogo do trabalho Giovanni Alves afirma que se trata de uma “integração orgânica do trabalhador ao capital”, um processo marcado pela subordinação intelectual e pela captura da subjetividade dos trabalhadores e trabalhadoras.
Uma terceiro movimento, mais recente, refere-se à desregulamentação do trabalho e à ofensiva aos direitos trabalhistas e previdenciários. No caso brasileiros, especificamente, vimos desde o golpe jurídico-parlamentar de 2016 um conjunto claro e consequente de ataques sustentados por um falso discurso de modernização do trabalho e dinamização da economia. O fim do imposto sindical, a sobreposição do negociado sobre o legislado, a terceirização irrestrita, o trabalho remoto e intermitente, os honorários de sucumbência, foram duros golpes contra os trabalhadores, principalmente os mais pobres, que estão sujeitos aos desmandos do patronato e ao sabor dos interesses do mercado. Já a Reforma da Previdência foi o golpe final capaz de suplantar o mínimo de dignidade que nos resta: o direito a uma aposentadoria digna depois de tantos anos de labor e contribuição.
No serviço público, a priori, nos sentimos imunes a todo esse ciclo de destruição de direitos e precarização do trabalho. Mas será mesmo que as Instituições Federais de Ensino são uma bolha apartada da sociedade? A resposta à questão é óbvia e basta observar como o nosso trabalho nas IFES tem se intensificado e se tornado, a cada dia, mais precário e adoecedor. Somado a isso, é possível observar a construção de uma narrativa ideológico-midiática de que o servidor público brasileiro trabalha pouco e recebe salários exorbitantes: para alguns segmentos da sociedade, para parte significativa da mídia e para o governo atual, somos verdadeiros marajás. Na prática, o que ocorre, é que estamos há dois anos sem reajuste salarial e trabalhando em condições cada dia mais limítrofes e insalubres.
Antes mesmo de ser eleito, o presidente Jair Bolsonaro já promovia uma ampla campanha de difamação e desqualificação da universidade pública e dos institutos federais. Nós, trabalhadores das IFES, vimos nosso espaço de trabalho ser chamado de local de balbúrdia, fomos acusados de doutrinadores e até xingados de vagabundos. O presidente simplesmente desconhece ou ignora toda a produção científica e tecnológica da universidade e o seu compromisso com o social.
Já presidente – tutelado pelo seu Chicago Boy, Paulo Guedes – Bolsonaro cuidou de promover um verdadeiro corte nos orçamentos das IFES, afetando não somente as verbas de manutenção e custeio, mas também bolsas de pesquisa e extensão, programas de profissionalização e formação de professores para a educação básica, hospitais-escola, assistência estudantil, verbas de capacitação e eventos, compromissos com fornecedores, entre outras. O Ministério da Educação – pasta tão estratégica para o desenvolvimento regional e nacional – encontram-se atualmente nas mãos de um sujeito com fortes traços de descompensação mental e um verdadeiro ódio à universidade pública.
Recentemente, Bolsonaro e Guedes idealizaram o Decreto nº 9.991/2019, que altera a Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas da Administração Pública, centralizando e restringindo as licenças para mestrado e doutorado em apenas 2% do contingente total do órgão ou autarquia. Além disso, a dupla dinâmica prepara um novo pacote de maldades para o serviço público federal. A famigerada Reforma Administrativa deve aumentar o período do estágio probatório, tornar mais rígido os processos de avaliação de desempenho e progressão, unificar carreiras, acabar com as gratificações e até mesmo colocar fim à estabilidade no serviço público – o que se torna ainda mais grave e preocupante em um cenário de ampla polarização política.
A pergunta que clama é a seguinte: nesse cenário de difamação e precarização do nosso trabalho, como se encontra a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras das IFES? Quando falamos na relação entre saúde e adoecimento é de praxe individualizar o processo, afirmando a saúde ou a doença como um fenômeno individual, ligado estritamente ao auto-cuidado e/ou aos bons hábitos de vida e de trabalho. Não é bem assim: a saúde/doença é um fenômeno biopsicossocial, ou seja, integra as dimensões fisiológica, psicológica, social. De exercícios físicos, passando por uma boa alimentação, até boas relações no trabalho ou no amor, tudo isso é fator de saúde. Por outro lado, um cenário político de risco iminente, precarização do trabalho, destruição de direitos e garantias, é sem dúvida um fator potencial de adoecimento.
Segundo dados fornecidos pelos Subsistemas de Atenção Integrada à Saúde do Servidor (SIASS), a Universidade Federal de Goiás teve 1.558 pedidos de afastamento do trabalho por motivo de saúde, afetando 783 servidores os quais totalizaram 30.471 dias de afastamento nos últimos doze meses. Já o Instituto Federal de Goiás e o Instituto Federal Goiano tiveram 1.065 pedidos de afastamento de 548 servidores em um total de 25.200 dias de afastamento no último ano[2]. É fato que os afastamentos podem contemplar desde uma crise lombar até uma incapacidade laboral em razão de um transtorno depressivo maior, mas não deixam de ser alarmantes, sobretudo quanto pensamos a saúde na sua integralidade.
A clínica psicodinâmica do trabalho defende a centralidade do trabalho tanto do ponto de vista psíquico quanto do ponto de vista social. É por meio do trabalho que conquistamos a nossa identidade enquanto sujeitos, é por meio da atividade laboral que somos reconhecidos socialmente e pelos nossos pares. O trabalho é ainda central à organização da vida em sociedade, às relações sociais entre os gêneros e, segundo Christophe Dejours, o único mediador social e político capaz de conduzir à emancipação humana. O trabalho é fator constitutivo da saúde, mas também passível de conduzir o sujeito ao adoecimento e, em situações limítrofes, até levar ao suicídio
Na sociedade do capital, os trabalhadores e trabalhadoras vêm sendo consumidos e descartados como meras mercadorias massivamente substituíveis. As sucessivas derrotas políticas do campo progressista e popular, no Brasil e no mundo, somado à explosão do número de casos de adoecimento e suicídios ligados às questões do trabalho, expressam um erro de tática e estratégia das organizações político-partidárias e dos sindicatos, que insistem na ortodoxia e no pragmatismo que já não cabe mais na liquidez do nosso tempo histórico. Não que a luta de classe tenha deixado de existir, longe disso: mas é sabido que se continuarmos a negligenciar as questões da saúde e da subjetividade, seguiremos derrotados.
Para reconquistar a saúde no trabalho nas IFES é preciso, antes de mais nada, transformar a organização do trabalho: romper com a lógica gerencialista e com os princípios da eficiência e da produtividade – importados da iniciativa privada. É preciso ainda suplantar a concorrência generalizada, as formas de avaliação individualizadas e a exaltação do hiperativismo profissional, que mais servem para destruir os laços de solidariedade, cooperação e inviabilizar a mobilização subjetiva dos trabalhadores e trabalhadoras. Além disso, é preciso colocar um novo olhar sobre a questão do adoecimento no trabalho para além das estatísticas e os números de afastamentos, abandonando definitivamente os processos de culpabilização e individualização da doença laboral.
Do ponto de vista social, é preciso – como afirma Christophe Dejours – “repensar o trabalho e transformar a vida”, entendendo o trabalho como o fundamento de todas as relações sociais, econômicas, políticas, geoespaciais, de gênero e, consequentemente, como gênese de problemas sociais, tais como, a favelização, a violência, a imobilidade urbana, a expulsão dos camponeses da terra, o massacre das populações tradicionais. É a “guerra econômica” em favor das classes privilegiadas que concentram a riqueza. Ou seja, a questão da saúde/doença não é mero penduricalho – como concebem muitos sindicatos e instituições públicas e privadas – é expressão e o sintoma de uma sociedade desigual regida pela lógica capitalista.
É preciso que sigamos o exemplo recente dos trabalhadores uberizados: sem vínculo, sem local de trabalho, sem direitos trabalhistas e previdenciários, sem representação sindical, sem um patrão contra quem lutar, mas ainda assim buscando os laços de solidariedade, cooperação e afeto, como mostra o registro abaixo feito no centro de São Paulo em agosto deste ano:
[1]O termo aparece nas ciências do trabalho francófonas como “tournant gestionnaire”;
[2]Dados solicitados por meio do serviço de informação ao cidadão (e-sic) do governo federal para finalidade de pesquisa acadêmica. Os dados do SIASS da UFG referem-se ao período de 19/09/2018 a 19/09/2019. Já os dados do SIASS integrado IFG/IFgoiano referem-se ao período de 16/10/2018 a 16/10/2019.