ARTIGO: EBSERH e a contradição essencial
Por Gustavo Adolfo Sierra Romero
“A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes”.
Thomas Morus – A utopia.
Em artigo recente, o professor Antonio Teixeira sugere que a Universidade de Brasília aceite a proposta do Ministério da Educação (MEC) e transfira a gestão do Hospital Universitário de Brasília (HUB) para a recém-criada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Propõe-se assim, que a UnB, fazendo uso da sua autonomia, aceite a proposta do MEC como uma solução para a crise crônica que ao longo das últimas décadas o HUB sofreu e às quais, diga-se de passagem, sobreviveu com dignidade e fidalguia. Volto a escrever sobre este assunto, pois, o relativo silêncio em que tramita o possível processo de incorporação do Hospital da UnB à EBSERH em nada contribui para a ilustrada e participativa decisão que todos esperamos da maior instância deliberativa da instituição.
Torna-se oportuno lembrar que a EBSERH nasceu no seio da parceria do MEC com o Ministério do Planejamento para resolver o problema de déficit de funcionários públicos nos Hospitais Universitários (HUs), sem permitir a realização de concurso público de trabalhadores estatutários e permitindo, paralelamente, a contratação, conforme reza o estatuto da empresa, pelo “regime jurídico estabelecido pela legislação vigente para as relações de emprego privado”. Esta perda do compromisso do Estado, em manter um corpo permanente e estável de trabalhadores em um setor sensível da atenção à saúde de média e alta complexidade, constitui, para os defensores da empresa, uma vantagem para a gestão que poderá fazer uso do seu poder discricionário para demitir funcionários ineficientes e, para os seus detratores, um retrocesso maiúsculo na concretização dois ideais plasmados na constituição federal para o setor saúde, no marco dos direitos fundamentais dos cidadãos e das obrigações irrenunciáveis do Estado.
Certamente, o que não tem sido amplamente discutido é o potencial uso desse poder discricionário em épocas de vacas magras, quando os setores de saúde e educação costumam sofrer cortes substanciais. Caberia perguntar aqui se a Universidade de Brasília concorda, a priori, ao entregar a gestão do HUB às decisões “empresariais” da EBSERH, que em situações críticas, como as atualmente vividas pela Grécia, fosse reduzido o número de funcionários e, portanto, de leitos hospitalares, sob pressão de banqueiros e do Fundo Monetário Internacional.
Por outro lado, pouco se revela do perfil da EBSERH e do seu modus operandi, ao mesmo tempo em que se pressiona para que as universidades se pronunciem dando o seu aval para a “adesão”. Adesão esta, que, como pregou o ex-ministro da Saúde Humberto Costa no Senado, é ”voluntária” e “autônoma”, ignorando o pequeno detalhe de que, nos bastidores, é clara a mensagem que dissimuladamente ameaça asfixiar financeiramente as instituições que se neguem a aderir. Autonomia de vulneráveis sem opção não é o que todos desejamos para a nossa futura Autônoma Universidade de Brasília, com orçamento próprio e livre para pensar, discutir, deliberar e executar a sua missão no marco da participação democrática e comprometida com as necessidades mais relevantes da sociedade brasileira.
Por ter a sua gravidez e parto fora do Ministério da Saúde e longe do controle social do Sistema Único de Saúde, seria muito otimista esperar que o elevado ideário do SUS fosse considerado na sua concepção. A EBSERH vai à contramão de uma gestão descentralizada e retrocede brutalmente no longo e complexo processo de apropriação legítima que o povo brasileiro vem fazendo do seu Sistema Único de Saúde, ao qual a EBSERH poderá dar um golpe crucial. A proposta no estatuto da EBSERH do órgão responsável pelo que ali se chama de “controle social” é irrisória.
Chamo uma vez mais a atenção sobre a obscuridade do discurso e a ausência de clareza nos mecanismos de financiamento da EBSERH que só podem inspirar temores sobre a quase certa expropriação do patrimônio das universidades e a exclusão do foro universitário da necessária e legítima pactuação com os gestores locais do SUS. Sem a possibilidade de participação efetiva nessa pactuação haverá risco real de distorcer a formação dos estudantes em cenários aberrantes e distantes do sistema ao qual os HUs estão devotados.
Neste momento crucial da nossa história universitária, não podemos esperar menos das nossas autoridades do que um processo de instrução claro e sereno, fundamentado sobre fatos concretos e não sobre acenos ou canto de sereias.
O recém-empossado presidente da EBSERH afirmou que os acordos com as universidades federais seguirão “modelo-padrão” e aqui radica a contradição essencial. Se a empresa pelo seu estatuto prestará serviços às instituições federais, entende-se que como “contratada” pela Universidade seria salutar e natural que as exigências e padrões do contrato fossem determinadas pela contratante, como acontece em qualquer relação contratual moderna e racional. No entanto, a EBSERH vem com discurso impositivo de dona e senhora das regras e as universidades vulneráveis tem que contratá-la, pois ela detém as chaves do cofre com os recursos do orçamento federal para o funcionamento dos HUs. A partir desse falso modelo contratual que nasce perverso e invertido na sua relação entre as partes, não podemos esperar que frutifique positivamente para a UnB.
Agora que, tardiamente, a Universidade de Brasília inicia a discussão sobre um assunto tão relevante e considerando a incerteza que prevalece sobre a proposta da EBSERH, os conselheiros e conselheiras do nosso órgão deliberativo superior merecem melhor instrução do que a publicizada pelo MEC até o momento. Ainda, a possível deliberação sobre a adesão à EBSERH incorrerá em imprudência se tal ato não for instruído em detalhe sobre esse “modelo-padrão” que se propõe. Pensar a proposta da EBSERH dentro do marco do longo caminho para a construção da autonomia universitária plena é uma tarefa obrigatória para toda a comunidade da UnB.
Finalmente, decidir, tendo como pano de fundo a visão trágica de um hospital que sofre pela falta de recursos financeiros, certamente é uma tarefa difícil que deve ganhar inspiração na coragem dos trabalhadores e trabalhadoras do hospital. Trabalhadores e trabalhadoras que anseiam pelo fim da precariedade financeira da instituição e da precariedade e instabilidade dos seus próprios salários para alcançar a felicidade do emprego digno no seu papel de cuidadores da saúde do provo brasileiro. Só assim, sem a própria autonomia vulnerada, a UnB poderá tomar uma decisão sabia rejeitando a indecente proposta que ataca os fundamentos da sua visão utópica.
Brasília, 01 de março de 2012.
Gustavo Adolfo Sierra Romero é médico, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, ex-diretor do Hospital Universitário de Brasília e Especialista em Gestão Hospitalar.