Circulou no início do ano a notícia de que o Brasil fechou 2022 com um superávit primário. Significa que se gastou menos do que se arrecadou. Isso seria uma ótima notícia, não fosse o fato de que é enganosa. Gastou-se menos, é verdade, mas não por competência dos gestores ou austeridade. Tampouco foi a arrecadação acima do previsto que justificaria tão “alvissareira” notícia. Na mesma época, uma vez empossado o novo governo, surgiam preocupações justificadas com o montante das dívidas judiciais na montagem do orçamento de 2023 e a definição do novo arcabouço fiscal. As coisas estão diretamente relacionadas, embora habitualmente noticiadas em separado.
O superavit é apenas aparente, pois a suposta redução de gastos, decorreu da diminuição de prestação de serviços e da não reposição de cargos e congelamento da remuneração. Mas, o principal motivo desse superavit fictício se deu em razão de o Governo Federal ter postergado algumas de suas dívidas, mais precisamente aquelas decorrentes de condenações judiciais, comumente conhecidas como precatórios.
Deveriam ter sido pagas, mas não foram. Não foram pagas pelo governo Bolsonaro por conta da PEC do calote por ele mesmo apresentada e avalizada pelo Congresso. Outras dívidas serão honradas e estão garantidas no orçamento, como, por exemplo, o pagamento de títulos públicos que vencerem (tesouro direto, por exemplo), juros contratados com credores, dívidas imobiliárias etc. Logo, o calote atinge apenas alguns credores, dentre eles os servidores públicos e segurados do INSS.
Para se ter uma dimensão do problema: no Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª região (PR, RS e SC), houve pagamento de apenas 48% do total da dívida com precatórios do ano de 2022. Ficaram sem receber pagamento diversos credores de verbas alimentares, as quais, teoricamente, teriam preferência, além de todos os credores de dívidas comuns (não alimentares).
Os valores não pagos foram empurrados para 2023 (somando-se às demais dívidas que ano a ano vão surgindo, o que forma uma bola de neve). Ao mesmo tempo, demonstrando uma completa desordem e falta de critério, o TRF da 2ª região (RJ e ES) recebeu verba suficiente para pagar todos seus credores alimentares e ainda saldou algumas dívidas comuns (as últimas na classificação de prioridades), ao passo que na região sul, sequer foram zeradas as filas de credores prioritários (servidores e segurados do INSS). Por que razão um servidor com precatório alimentar para 2022 na região sul ficou sem pagamento, enquanto a Petrobrás recebeu da União um precatório de natureza comum de quase R$ 3 bilhões Rio de Janeiro?
Nesse grupo de credores frustrados, encontram-se servidores públicos com créditos envolvendo diferenças de vencimentos, proventos de aposentadoria ou benefícios previdenciários, ou seja, dinheiro que o credor deixou de receber no contracheque no momento certo. São dívidas de natureza alimentar. A divulgação do superavit no início do ano trouxe, com algum destaque, a informação de queda da despesa com pessoal no Executivo Federal de quase 3 pontos percentuais em comparação a 2021.
Ou seja, gastou-se menos com o pessoal, o que não surpreende por conta da ausência de recuperação da inflação durante todo o governo Bolsonaro para quase totalidade do funcionalismo. Contudo, o que nos importa destacar dessa notícia é que o gasto de pessoal segue bem abaixo do teto previsto na Constituição desde a polêmica PEC dos Gastos, de 2016, do governo Temer, a qual congelou despesas primárias da União por 20 anos.
O teto de gastos com pessoal na esfera federal fixado em lei é de 50% da Receita Corrente Líquida (RCL) (grosseiramente, aquilo que se arrecada com tributos). Esse grupo de despesa em 2022 ficou em 18,8% da RCL — sequer a metade do limite prudencial de gastos.
Logo, usando os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), é possível dizer que, na esfera federal, as despesas com pessoal estão “controladas”. Isso, contudo, não foi suficiente para garantir o efetivo recebimento das despesas de pessoal pagas através de condenações de judiciais em que se litigava em torno de vantagens remuneratórias. Lembrando: precatórios alimentares de servidores geralmente decorrem de verbas remuneratórias (gastos de pessoal).
Em outras palavras, tivesse o Poder Executivo pago no momento certo essas diferenças remuneratórias, não haveria necessidade de processo judicial e tampouco se estaria gastando acima do limite da LRF. Agora, pelo fato de terem sido obrigados a procurar o Judiciário para receber seus direitos, os servidores públicos ficarão sem receber seus créditos. Isso decorre, dentre outros tantos motivos, do fato de terem sido jogados na vala comum dos credores de precatórios, além de terem sido submetidos a um segundo teto (subteto) de gastos.
Logo, impelidos a buscar em juízo seus direitos, as despesas de pessoal com esses trabalhadores mudam de nome e passam a se chamar “precatórios” e, por esse motivo, não serão pagas. Restará a esses credores se jogar nos braços de um mercado financeiro ávido por lucro fácil em razão dos deságios escorchantes que são praticados. Alternativas devem existir, tais como: 1) O Executivo e o Congresso podem corrigir o erro apresentando — e aprovando — nova PEC para derrubar o subteto dos precatórios, no mínimo em relação aos gastos com pessoal. 2) O Judiciário, no caso, o STF, pode sepultar essa inconstitucionalidade, como já fez no passado.
Infelizmente, concretizou-se a profecia do ministro Luiz Fux sobre a criação de “regimes especiais” de precatórios se confirmou. Em 2013, ao acolher a inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional 62 que criava uma nova moratória aos precatórios estaduais e municipais, o ministro previu: “É provável que daqui a dez anos o Supremo Tribunal Federal seja novamente chamado para avaliar a constitucionalidade de pretensos “regimes especiais”, que em essência servem apenas para mascarar a realidade, dobrando as instituições jurídicas segundo a conveniência do poder” (Luiz Fux, 2013, ADI 4357).
A questão que se coloca é: o STF será moroso no julgamento a ponto de o estoque de precatórios chegar a um nível insustentável a ponto de comprometer a sustentabilidade das contas públicas? Temos esperança que não, pois, não se está discutindo apenas o interesse dos credores, mas a própria essência da prestação jurisdicional. Qual a seriedade de um sistema judicial em que o condenado tem o poder de empurrar adiante o cumprimento da pena para quando lhe convém?
Fonte: CONJUR